Por
Michelson Borges
Ganharam o mundo e causaram
grande comoção a notícia e as imagens da morte de um cachorrinho brutalmente
espancado e envenenado pelo segurança de uma unidade da rede de supermercados
Carrefour, em São Paulo. Internautas, ativistas pelos direitos dos animais,
celebridades e políticos estão se manifestando publicamente desde o dia 28, em
uma mobilização que fez com que milhões de pessoas assinassem uma petição
exigindo a punição do funcionário e da empresa. O promotor de Justiça
Marco Antônio de Souza instaurou um inquérito civil para apurar a ocorrência.
Ele considera “dever do Estado, segundo a lei, proteger todos os animais”. O
ativista Rafael Leal, da ONG Cão Leal, convocou um protesto em frente ao
supermercado. E disse: “Estamos convidando todas as pessoas de bem a se
manifestarem contra esse crime. Nosso pedido também é para que as pessoas não
comprem em nenhuma loja da rede.”
De
fato, a morte do bichinho de maneira tão desumana é totalmente condenável e
deve ser devidamente punida, mas quero aproveitar este momento de ânimos
exaltados para expandir um pouco mais a reflexão sobre o ocorrido.
Em
entrevista ao jornal El País, a psicanalista Vera Iaconelli,
doutora em psicologia pela USP e diretora do instituto Gerar, disse que
“qualquer forma de crueldade contra seres vivos é injustificável e deve ser
condenada em todas as instâncias. Mas parece existir certa desproporção com
relação à defesa de alguns seres vivos em detrimento de outros, o que mostra
que estamos com dificuldade de fazer uma reflexão sobre nossos valores”.
Concordo
com a Dra. Vera, afinal muitas das pessoas que agora estão vociferando nas
redes sociais e clamando para que o supermercado seja punido com boicote entram
e saem desses estabelecimentos com seus pacotes de picanha, filés, salsichas,
pizzas de frango e alimentos temperados com bacon. Por que defendem tanto os
cachorros e ignoram a morte de frangos, bois, porcos e, pior, de bezerrinhos
que fornecem matéria-prima para as tão apreciadas vitelas? Por que muitas
dessas mesmas pessoas que estão assinando manifestos contra o Carrefour e
contra o segurança desalmado não ficam indignadas como eu fico quando vejo
caminhões apinhados de frangos ou porcos cruzando rodovias, debaixo de chuva,
sol, frio e calor, para depois da tétrica viagem acabar no matadouro? Por que
essas mesmas pessoas que se sentem tão humanas por se manifestar a favor do
cachorrinho não vão visitar um matadouro para ver quão humanos eles são?
“Ah,
mas cachorros não são comida!” Diga isso a um chinês apreciador desse tipo de
carne… E depois pergunte a um hindu o que ele acha do fato de ocidentais
comerem vacas… Então é a cultura que deve classificar que bicho será mais ou
menos amado? São os costumes que devem nortear nossa defesa dos animais mais
defensáveis? O promotor citado há pouco considera “dever do Estado, segundo a
lei, proteger todos os animais”. Mas, convenhamos, nem todos os animais vêm
sendo protegidos. Na verdade, a maioria deles vem sendo devorada todos os dias.
Há
outra reflexão que pode ser feita a partir da morte do cachorrinho. Vivemos em
uma época em que o amor aos animais aumenta na mesma proporção em que aumentam
também a indiferença e a intolerância pelos iguais. Claro, é muito mais fácil
tolerar e amar um ser que nunca nos contraria e que sempre está do nosso lado,
mesmo depois de receber uma bronca. Ele não nos critica. Não discorda das
nossas opiniões. Enfim, é talvez exatamente por isso “o melhor amigo do homem”.
Pessoas são diferentes. Elas, sim, nos contrariam. Nos obrigam a pensar de modo
diferente. Até nos ofendem e nos obrigam a exercer a capacidade de perdoar.
Assim, como diz a Dra. Vera, é mais fácil se mobilizar por um animal que nos
faz sentir maravilhosos do que por um sujeito que, sendo humano, é falível por
natureza.
Vera
destaca também um paradoxo brasileiro: enquanto animais de estimação desfrutam
de planos de saúde e até recebem herança, crianças morrem de fome ou vitimadas
por balas perdidas dentro de casa. Pessoas que se sensibilizam com cachorrinhos
sarnentos vagueando pelas ruas nada fazem quando veem um menino ou uma menina
pedindo esmola num sinal de trânsito. Alguns ativistas que levantam cartazes em
defesa de gatos e cachorros “vão ali” depois erguer outros cartazes em defesa
da morte de crianças inocentes arrancadas aos pedaços do útero materno.
Cadê os manifestos contra essas injustiças? Cadê a comoção nas redes sociais?
Ou já nos acostumamos com essas mazelas cotidianas?
A
morte do cachorrinho nas dependências do Carrefour em São Paulo foi triste e
causou revolta geral porque acabou sendo registrada por câmeras. Infelizmente,
quase ninguém filma o sofrimento de ovelhas, bois, bezerros, galinhas e porcos
que morrem todos os dias aos milhões para servir de iguaria para muitos
“defensores dos animais”.
Mundo
estranho, triste, incoerente e injusto o nosso. Que venha logo o novo mundo em
que crianças nunca mais sofrerão, animais não mais serão comida, a violência
será uma mancha esquecida na história do Universo, e a harmonia e o amor serão
a marca dos relacionamentos – entre humanos e humanos, entre animais e animais,
e entre humanos e animais.
Um detalhe importante: Ativistas
que manifestam ódio contra pessoas que comem carne enquanto defendem os animais
também revelam a marca de contradição. Devemos amar e respeitar todas as
pessoas e, se for para convencê-las, que seja na base do amor e dos bons
argumentos, não do ódio e da intolerância, que apenas agridem e repelem.